Por muito tempo Kerouac representou para mim um boêmio hedonista, notadamente grande escritor, que se tornou o ídolo da contracultura norte americana. Por muito tempo Kerouac era apenas mais um dos “beats” que propunha um jeito de viver que depois conhecemos como hippie. Por muito tempo Kerouac foi para mim um criador de personagens memoráveis que eram tristes, seres em falta (como diria Freud). A verdade é que eu conhecia superficialmente o senhor Jack. Por ser uma louca por estrada e viagens, eu sempre gostei de sua obra On the road (Pé na estrada): uma convocatória a uma vida mais livre, mais louca, mais leve, mais incerta. Sob muitos aspectos, Kerouac soube falar a muitas gerações porque ele falava abertamente das faltas que sentimos, dos sonhos utópicos que deixamos de lado para nos encaixarmos e sobrevivermos, e das contradições que marcar o que é ser humano. Por muito tempo este foi Kerouac: impestuoso, boêmio, louco, sonhador.
2015 me apresentou uma outra faceta do Kerouac: cristão.
Confesso. Fiquei impressionada. Contrariada. Assustada. Encantada.
Especialmente porque o Kerouac cristão me falou sobre as debilidades de ser humano e me apontou a Cristo, este a quem seguimos e pouco imitamos.
Enfim,
Depois de On the road (desculpa mas gosto da sonoridade do inglês desse título), Tristessa e Cidade pequena, Cidade grande comecei a ler “Os diários de Jack Kerouac” e que boa surpresa ter acesso aos seus diários e escritos pessoais e conhecer uma pessoa que todos os dias tentava “falar com Jesus”. Apesar de não frequentar mais a Igreja Católica desde que tinha 14 anos, o jovem Jack era um devoto e gostava de ser.
Ao longo dos seus diários, o beat vai questionando a Jesus qual a sua opinião sobre o sonho americano, vai contando a Jesus as suas noitadas de drogas e sexo e vazio, vai descrevendo a grande inspiração que São Francisco, Tolstói e Dostoievski são ou devem ser para todo cristão, Jack vai nos mostrando sem saber como funciona sinceramente uma vida cristã. Aquela que não é exemplo pra ninguém e ainda clama pela necessidade de um salvador, e reconhece que tudo isso é passageiro. Nos seus diários, ele vai registrando o que lhe importa, e Jesus lhe importa profundamente.
“Vou escrever sem parar sobre a dignidade dos seres humanos não importa quem o que sejam, e quanto menos dignidade uma pessoa tiver, menos palavras vou usar. É a pura humanidade de um homem quem vem primeiro, seja maluco, bicha, “Preto”, ou criminoso, seja pastor, financista, pai ou senador, seja puta, criança ou coveiro. Não me importa quem ou o que – e eu ter me importado antes é insulto a Dostoiévski, Melville, Jesus e meus pais.” (1949)
Kerouac quebra o zeitgeist que o envolvia. A medida que refletia sobre todo o vazio do otimismo capitalista em que vivia, ele escrevia Salmos. Nas mesmas páginas em que falava da importância de ter fé em si mesmo e não desistir das coisas, ele apontava o quanto o ser humano é débil e incapaz.
(Quero esclarecer que Kerouac não é exemplo pra ninguém. Especialmente do ponto de vista de nossos dogmas doutrinários e teologias. Kerouac foge a toda categorização de cristão e ainda assim, vejo na relação dele com Cristo muito mais pureza que a de muitos homens religiosos).
Jack Kerouac mostra o tamanho do nosso fracasso em sermos bons e consequentemente o quanto precisamos de graça. Ele é uma prova viva de como somos instáveis e por isso precisamos de Um ponto imutável. Ele reconhece Deus nas coisas grandes e pequenas da natureza. Ele procura Deus nos sistemas humanos e não encontra, se desespera. Kerouac recorre a suas referências e encontra Dostoievski descrevendo como a graça funciona em Crime e Castigo e em Os Irmãos Karamázov e conclui: Dostoievski entendeu mais de Jesus do os religiosos estadunidenses que o cercavam.
Depois críticos, estudiosos e fãs tentaram enquadrar Kerouac. Disseram que ele praticou um cristianismo esotérico, que ele tentou fundir cristianismo e budismo, que isso, que aquilo. Os seus diários nos mostram alguém tentando acertar em meio a erros e tentando desesperadamente ver Deus em tudo. Em seus últimos anos de vida, Kerouac já muito famoso foi entrevistado em casa, uma das perguntas resume o jeito de ser do beat.
PERGUNTA: Por que você nunca escreveu sobre Jesus? Já escreveu sobre Buda, não? Jesus não foi um cara incrível, também?
KEROUAC: Como não escrevi nunca sobre Jesus? Quer dizer que você é um impostor maluco que veio na minha casa… e … eu só escrevo sobre Jesus. Sou Everhard Mercurian, general do exército jesuíta.
De uma maneira difusa, Kerouac suplica a Deus “Atinja-me, e eu vou soar como um sino. …..” Disso surgiu o termo beat, uma referência dele ao soar do sino. Kerouac percebeu que apesar de toda a sua força e beleza o mundo não responde ao anseio do homem por mais.
É impossível encaixotar Jack Kerouac, morto aos 47 anos, alcoolizado, depois de uma vida inteira experimentando todas as possibilidades humanas de sexo, drogas e contravenções e igualmente atormentado por ver em quase tudo a santidade de Deus.
Um amigo me disse: Kerouac era esquizofrênico só pode. Como alguém vive nessa contradição?
Eu penso que não. Kerouac era humano. Do tipo não tolhido em seus desejos. Humano vivendo todas as possibilidades da existência. E principalmente humano reconhecendo a falência da humanidade e a necessidade de salvação. “Livre” para tudo no mundo, oprimido pela sensação da santidade que não alcançava.
Jack Kerouac se propôs a colocar o pé na estrada para entrar em contato com todas as “possíveis manifestações de Deus”. Pois para ele, Deus se manifesta de inúmeras maneiras, nas relações, nos silêncios, no vento da estrada.
Kerouac errou mais do que acertou. E no entanto ele nunca cometeu o erro de acreditar que tinha se encontrado. Ele estava buscando. Ele estava na estrada. Ele era peregrino. Ele escreveu mais de uma vez que isso aqui era passagem, havia uma eternidade posteriormente.
Poucos homens e poucos escritores foram tão sinceros ao confessar a exatidão da nossa efemeridade e o anseio do homem pelo divino.
“Deus não consigo ver seu rosto esta manhã: a noite foi partida, uma luz natural surgiu e, veja! lá está a cidade, e os homens da cidade com suas rodas chegando para engolir a escuridão sob as torres.
Ah! Ah! Aqui há raiva, Deus, há também uma ponte sobre a qual as rodas colidem, embaixo da qual elas trazem mais rodas e túneis, há uma chama enraivecida, aqui, com as multidões insípidas.
Preciso ver o seu rosto essa manhã, Deus, seu rosto através de vidraças empoeiradas, através do vapor e do furor, preciso ouvir sua voz acima dos tinidos da cidade; estou cansado, Deus, não consigo ver seu rosto nesta História.”
(Salmodia, 1939)
A vida de Kerouac me lembra muita a canção “Eu olhei o meu dia”, especialmente aquele trecho em que diz “toda arte que eu faço, todo som entoado, não é mais que uma grande vontade de Te conhecer”.