O regionalismo imaginário de Julhin de Tia Lica

 


“Olha pro céu, meu amor. Veja como ele está lindo…”, assim eternizou o céu sertanejo o mestre Luiz Gonzaga. Na correria da rotina, nossa atenção para o céu acabou se limitando ao clima. Sol ou chuva, isso basta para o nosso interesse. Quando a noite cai, as luzes que percebemos não são das estrelas, mas das lâmpadas que criam uma camada que nos distancia do firmamento. Uma vez, quando era criança, fui visitar alguns parentes que moram numa área rural de João Pessoa-PB. Em uma Fiorino aberta, atravessamos um canavial que conectava dois vilarejos. Sem luz e sem lua, olhei para o céu boquiaberto. Parecia que alguém havia esmigalhado uma pedra em milhares de pedaços no céu. Não havia um espaço vago sem praticamente ter um ponto luminoso, isso sem falar, na pincelada poética da Via Láctea que, na época, não fazia ideia o que era. Aquela imagem jamais saiu da minha mente e a guardei como uma prova da magnitude divina e da pequenez humana.

Quando soube do lançamento de Auto do Céu, fiquei curioso com o que Julhin traria. Do pouco que o conheci em Recife-PE, vi um cara simples, de sorriso farto e olhos brilhantes. O mais regionalista do Candiero, Julhin de Tia Lica era a personificação do nordeste a começar pelo nome. Desde que ouvi seu single de estreia, Oração de São Pedro, tinha para mim que ele era o Roberto Diamanso desta geração. Sotaque, experimentos e muito carisma proporcionavam uma performance de encher o palco e fazer o público vibrar.

Ao ver a capa e o título do seu álbum, era inevitável não perceber que ele seria um caldeirão de referências. São apenas 20min, mas jamais você será traído pela sensação de pouco tempo. Ele é como um disparo de um foguete, que atinge milhares de quilômetros em poucos instantes. Por isso, é preciso apertar bem os cintos para essa viagem no regionalismo imaginário de Julhin.

Auto (do latim actu = ação, ato) é uma composição teatral do subgênero da literatura dramática, surgida na Idade Média, na Espanha, por volta do século XII. De linguagem simples e extensão curta (normalmente, compõe-se de um único ato), os autos, em sua maioria, têm elementos cômicos ou intenção moralizadora. Suas personagens simbolizam as virtudes, os pecados, ou representam anjos, demônios e santos.

Assim que a Wikipédia define a palavra e, no trocadilho, entre auto e alto, o álbum nos faz rever, ou talvez relembrar, o que é o céu. Contando uma história, Auto do Céu certamente tem um quê de Suassuna. O imaginário sagaz, cômico e reflexivo do mestre Ariano faz parte da literatura nacional, em especial, da nordestina, com relatos que nos levam do riso ao choro em suas situações fantásticas. Muito mais que as peripécias de João Grilo e Chicó, Suassuna trazia com maestria um olhar sensível sobre a vida, os sonhos e as dores do homem nordestino. Dessa água provavelmente Julhin bebeu para contar a história da “morte do céu”.

Com um álbum intercortado por canções e declamações, Auto do Céu exige a total atenção do ouvinte para mergulhar a fundo em cada verso lúdico da obra. Transitando entre o sertão e a cidade, Julhin fala da nossa relação complicada com o céu. Em Primeiro Ato, já anuncia a morte do firmamento onde “tamparam a cova com concreto nos restando um quadradinho” (que seriam nossas janelas?).

A Incelença Pro Céu Sem Estrelas é de fazer chorar. Para quem não conhece a expressão, a incelença (excelência, na língua formal) é um canto fúnebre entoado por mulheres da ala dos penitentes. A prática veio da catequização portuguesa de séculos atrás e que fez raiz na simplicidade das sertanejas. Expressão sonora da fé, de canto marcante e, até de palavras erradas, Julhin traz uma incelença no cortejo da morte do céu. As vozes do Candiero fazem coro no canto bíblico de que não há nada de novo aqui, que nosso destino é a verdade, sendo escravo da vã liberdade.

No Segundo Ato, uma relevação: o céu foi enterrado vivo. Constelações, nuvens, estrelas estão tudo lá, só a gente que não vê. Fazendo ponte para primeira faixa realmente dita do disco, Ribassan traz a encantadora voz de Ana Heloysa, artista frequente aqui no AM. Ribassan, entre seus muitos nomes, é arribaçã ou avoante, uma ave nativa da caatinga e que já correu risco de extinção. O céu é lugar dos pássaros também. Cruzando-os à procura de comida e ninho, a canção fala da persistência, da busca por segurança, algo que não é perseguido apenas pelos pássaros.

A lembrança do céu é o tema do Terceiro Ato. Quem nunca sonhou em como é o céu? Quem, quando criança (ou até mesmo depois de velho), nunca se imaginou viajando no espaço? Nesse sonho fantástico, Julhin me lembra a aventura cósmica de C.S. Lewis. Lendo Além do Planeta Silencioso, me deparei com Malacandra. Mesmo com as detalhadas descrições do autor, minha mente muito se esforçou pra tentar “materializar” os cenários e os habitantes daquele planeta. Na versão que estou lendo não há ilustrações, apenas palavras me forçando a imaginar o que os olhos de Ransom estavam vendo. Certa vez até pensei em desistir de ler por achar que não estava conseguindo me situar na história, mas parei para pensar se esse exercício não era justamente a graça do livro. O que a razão constrói, o que olhos veem, é mais fácil de aceitar. Mas por que eu não continuaria a imaginar como eu vejo Malacandra? Realmente será que são tempos difíceis para os sonhadores como diria Poulain? Será que estão roubando nossa capacidade de sonhar? Ou como cristãos, nunca imaginamos como será o lar que Jesus está preparando? Como será a eternidade com Deus? O Terceiro Ato é um convite à fantasia, essa como instrumento de ensino e aprendizado.

Ainda no sonho do Terceiro Ato, Julhin encontra um “caranguejo véi” fazendo referência à Chico Science citando os versos de “O Encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no Céu“, do disco Afrociberdelia (1996). Mais uma vez a cidade e o sertão se encontram nas inspirações do artista, bem “assim como dizem vossos poetas…” de Atos 17.

Não tem como falar de música nordestina sem trazer o forró, baião e o xote para a sala de reboco. Em Barbaridade, Midian Nascimento é convidada para dividir os vocais. Foi a primeira vez que a ouvi e não tive como não lembrar a poderosa voz de mulheres como Amelinha e Elba Ramalho. A reflexão sobre o que fizeram com o céu, de fato, é uma barbaridade. Imaginar nosso lar é o recado da canção e um dia iremos para lá, voando feito um passarinho.

Continuando a conversa onírica com Chico, Julhin conta sobre os acontecimentos na Via Láctea no Quarto Ato. Tudo continua do mesmo jeito só os homens que não jeito, continuam enterrando o céu, só sossegam quando acabar com tudo, um cego lutando contra sua própria cura. Em Volta, a introdução a la Lenine e Silvério Pessoa é urbana. Profética, a faixa fala da volta de Cristo em trechos como “Ah, quando tu voltar pra aqui, tudo vai ser diferente, não vai ter tempo pra choro, só pra se mostrar os dentes”. A embolada/coco bem Jackson do Pandeiro dá o tom da crítica social, das mazelas provocadas pelo homem.

Ao acordar do sonho, o Quinto Ato é uma oração onde Julhin traz o conforto de saber que, apesar de todo o caos, temos a Deus que conforta nossos corações com sua esperança. De arrepiar, finaliza com “Ele vem, vem trazer sentido ao céu e nesse dia, todo mundo vai querer quebrar de uma vez o seu concreto para viver o abstrato e ver o céu real”.

Passa Tempo, com Ramon Souza, lembra Zé Ramalho e suas declamações nas canções. “Olhando para o céu me alegro, pois sei que todo meu sofrer, não se compara com a vida que contigo eu hei de ter”, cantam o duo. Amar é verbo transcendente, que excede tudo e nele devemos praticar dia a dia até que Ele venha. A faixa tem uma mudança radical em seus últimos minutos, chamando a essa vivência por onde nós formos. Seguir os seus rastros, pra lá do espaço. Assim Julhin encerra seu Auto do Céu.

O disco também traz Oração de São Pedro, seu single de estreia que foi aqui incorporado provavelmente para induzir o público a conhecer essa faixa incrível mesmo que ela destoe da proposta lírica do disco.

Por fim, a gratidão a Deus pela vida de Julhin por ser um sonhador, por nos fazer relembrar que podemos usar da fantasia e das referências “seculares” para uma bela, criativa e bíblica oferta à Deus. Que o nosso chão seja um céu de estrelas para que as pessoas vejam em nós, fragmentos do paraíso.