Diários de uma Audição: Rico Ayade

Petrolina, 24 de agosto de 2017

Atravesso é uma pausa e uma continuação. Um grato presente para os ouvidos. A simplificação máxima que nada tem de simples. Estou muito afetada por essa meia hora de voz e piano.

Minha cidade é separada da cidade vizinha pela rio São Francisco, as duas cidades tem vidas intrincadas e quase todos os dias precisamos atravessar o rio para o outro lado. Há duas formas de atravessar: pela ponte ou de barquinha.

Ao ouvir o “Atravesso” do Rico Ayade fiquei com a sensação de atravessar o rio de barquinha para o outro lado. O percurso é rápido e já o fiz milhões de vezes mas o misto de sensações permanece. Primeiro calma, sensação de ligação com todos os elementos naturais ali, depois preocupação com a poluição que produzimos e o mal que fazemos ao rio, depois medo de a barca virar, depois paz e certeza de que o condutor sabe o que faz, depois vontade que não acabe. Sempre tento colocar a mão na água. E tudo isso em um percurso de 10 minutos. Sempre faço esse percurso em silêncio mesmo que esteja acompanhado. É um breve momento de transcendência necessário.

Senti exatamente as mesmas coisas ouvindo o álbum do Rico. Alesson me perguntou se eu já tinha ouvido e me indicou. Me animei para ouvir pois gosto muito das duas canções da parceria dele com o Paulo Nazareth.

O álbum já começou me ganhando quando o Rico RECITA, sim RECITA, um poema e que lindeza:

“superfícies não me convencem mais,

não me encantaram jamais,

busco mergulhos mais fundos,

desejos profundos,

gente rasa não me molha,

é de amor que eu inundo”.

Para mim que sou apaixonada pelo modus performático com que Maria Bethânia conduz um show, já fiquei atenta e curiosa com uma expectativa ascendente sobre o que viria. Na minha cabeça se tem recitação de poesia tem coisa boa. Sinto sempre que haverá entrega. Estou há uma semana ouvindo este álbum sem parar.

O fato é que todo o álbum Atravesso é um livro de poesia. Alguns o Rico canta, outros ele recita. Não sei  te dizer qual canção ou momento me emocionou mais porque tudo fazia sentido pra mim.

A cada faixa, encontramos alguém muito atento à vida, alguém que sabe conduzir bem uma metáfora a medida que nos convence que tem vezes que “parece que a vida gruda no arame farpado da cerca da roça do mundo.” Todas as faixas são incríveis. Há um cuidado, construção do todo, uma história sendo contada e ainda assim cada pedaço é singular. Algumas faixas se comunicaram comigo como verdade se estranhando na pele.

Em Atravesso, canção tema do álbum, somos convidados a olhar as nossas cicatrizes, de todas as feridas que ganhamos ao lutar contra o arame farpado que é o mundo. Há uma constatação de que ser quem se é, resulta em sangue, cortes e luta constante. Há um convite: supere a cerca que te impede de ser, ser humano é um estágio entre o imediato e o imortal. Daqui do meu quarto eu ouço essa canção e penso em Riobaldo, do Guimarães Rosa, dizendo três coisas: viver é muito perigoso, precisamos sobreviver ao sertão em nós e, existe o homem humano –  Travessia. Ouvi “Atravesso” lembrando de Grande Sertão Veredas, a conclusão de ambas é a mesma: viver é atravessar, na travessia você vai sangrar para ter o direito de ser.

Outra canção muito marcante é Cais. Há uma viagem necessária, há abandono da zona de conforto, há precisança de “deixar os ais da lida” para viver o “muito mais da vida”. É um canção de adeus, belíssima, uma canção de consolo: abandone os “ais” que você conhece e se aventure. Me identifiquei muito. Acho que todos passamos por esse momento de abandonar as nossas certezas e lançar o barco no mar.

A interpretação de Rico me lembrou muito muito muito Gonzaguinha (nem sei se ele é uma referência para o cantor). Mas a cadência, a pausa para que as palavras comuniquem seu significado, a sucessão de frases fortes me remete muito ao filho de Luís Gonzaga. A composição Levante me lembrou demais a canção Pequena Memória para um tempo sem memória do Gonzaguinha. Há a mesma inquietação com nossa situação social e política, há o mesmo lirismo ao focar os refletores nos anônimos do cotidiano. Ambas as canções são pulsantes, são canções de guerra em voz mansa e tenra.

Por fim, em Olha esse rapaz, fiquei muito emocionada com a descrição que o autor faz de Cristo. A canção mostra-nos um Deus muito preocupado em ser humano, em sentir como nos sentimos, em compreender as nossas fragilidades de maneira que pudesse nos amar com propriedade. A canção fala-nos de um rapaz que na multidão é o invisível, tem saudade da sua cidade e pelos inimigos entrega o seu espírito. Fiquei comovida porque não bastava essa belíssima descrição desse rapaz que vence por amor, o Rico nos brinda com uma recitação provocativa sobre elementos que cercaram o rapaz e hoje nos dizem respeito (fome, prato, pão, sede, água, barco). Em seguida música prossegue falando que o rapaz tem um olhar que só quer perdoar, tem super poderes e não usa, se recusa a ser um star. Me apaixonei por esta canção porque me apaixono por essas facetas do rapaz. Me apaixono ao lembrar de tudo o que Ele poderia ter feito ou dito e não fez e nem disse porque não tinha consequências no plano eterno e eram apenas inflar ego. Esse rapaz que o Rico canta me confronta porque o encontro todos os dias e insisto em não parecer com Ele quando a ideia é que eu fosse parecida.

Rico Ayade obrigada por “Atravesso”, a viagem é curta mas cheia de sensações e reafirmações. Fui abraçada, acalantada e profundamente provocada com este álbum. Foi viagem deveras interessante.

 

Fotos: acervo próprio