Marco Telles é um nome que deverá ser lembrado na trajetória da arte cristã brasileira. Na música, nos livros ou nos posts, sua inquietude vem provocando a comunidade evangélica a refletir sobre sua visão e atuação no mundo. Nesse artigo, um breve comentário sobre seu pensamento e atuação.
Antes, uma breve contextualização
Certa vez fui à Foz do Iguaçu-PR e, conversando com o proprietário de um café, falávamos sobre a diversidade cultural que há na cidade. Além dos próprios brasileiros, a cidade é repleta de árabes, argentinos, paraguaios e gente dos quatro cantos do mundo. Sendo uma região altamente turística, caminhando pelos parques da Catarata, é normal ver uma infinidade rostos e línguas diferentes num mesmo local. Com isso, o dono do café me falou que, para ele, Foz do Iguaçu não possui necessariamente uma “cultura própria”, alguma expressão que identifique de maneira fácil a cidade. Saí de lá refletindo sobre isso, me perguntando sobre como seria o sentimento de pertencimento, de identidade local dos moradores. Mas depois fiquei pensando comigo: será que essa multiculturalidade não é a própria identidade da cidade?
Essa longa introdução, aparentemente descontextualizada com o objetivo do artigo, é para dar a diretriz da minha visão sobre o Marco Telles. Para mim, dos artistas que lidera no Candiero (conheça mais aqui), ele é o mais multifacetado. Sua discografia é cheia de referências para todos os lados: regionalismo, pop, rock, metal e até o tão comentado “worship” dá pra ser percebido em suas faixas. Assim como no caso do dono de café de Foz, há quem veja essa diversidade como a falta de uma identidade artística. Já outros podem vê-la como justamente sendo a sua principal marca. E sobre isso, o texto segue se atrevendo falar.
Marco Telles: o músico
Ouvir os trabalhos do Marco Telles é estar numa espécie de montanha russa ou um parque temático onde, a cada faixa, é uma experiência auditiva que exige a atenção de quem está ouvindo. Seja pela riqueza poética e teológica de suas letras, seja pelos experimentos musicais, é nítido que há talento no seu trabalho.
A obra “O Precioso Evangelho de Cristo”
Com uma proposta bastante interessante, boa parte da discografia de Telles compõe uma obra que ele chamou de O Precioso Evangelho de Cristo. Em 4 álbuns, ele aborda criação, queda, redenção e consumação como tema para cada álbum. A ideia começou com Prelúdios de Eternidade (2014), seguido por Devaneio (2015), Sublime Bem (2017) e encerrando com Devir (2019). Destes, os dois primeiros são uma profusão de energia e particularmente não me atrai tanto. Minha atenção se volta mais para os dois últimos por achá-los os mais equilibrados da proposta. Em Sublime Bem, ele traz um som mais polido, maduro e condizente com sua voz. Desse álbum, destaco a linda Domingo Triunfal sobre a ressurreição de Cristo. Já em Devir, o rock volta em alguns momentos, mas bem mais moderado. Do álbum de 2019, destaca a brilhante Eu e Tu e o Vento na voz de Juliana Tavares e, Canção do Cristão Medieval que parece ser a obra-prima de Telles até o momento.
Doxologia Primitiva
Em 2020, é lançado o álbum Doxologia Primitiva que vem meio que “musicalizar” os apontamentos do livro As Dez Marcas (que será comentado mais a frente). Para construir esse link, Telles inseriu em cada faixa, trechos de áudios que parecem enviados por Whatsapp ao produtor Daniel Alves, explicando a proposta de cada uma delas. Para uma primeira audição, o efeito é bastante positivo, mas a partir da segunda, já não parece agradável ou acaba desmotivando ter que ouvir isso todas as vezes. Esse, para mim, é o maior defeito do trabalho que, talvez poderia ter uma versão expandida ou comentada como já é comum de se ver nas plataformas.
Fora isso, o disco segue a versatilidade experimental característica da sua produção e traz vários nomes de peso da cena alternativa cristã nacional. Em praticamente cada faixa há um convidado e assim o álbum serve também como vitrine para que o público possa conhecer os demais, entre eles Ana Rock (Palankin), Guilherme Iamarino (Projeto Sola), Cantoverbo, Purples, Ana Heloysa e João Manô. Num geral, a proposta é bastante interessante e marcará o meio cristão por ser algo inédito (podemos assim dizer?) e bem produzido.
Marco Telles: o escritor
O primeiro escrito é Vida Após o Gospel. Num texto que parece uma conversa com o leitor, Telles traz suas impressões sobre seu entendimento a respeito da produção artística no meio cristão. Compilando seus estudos teológicos com sua experiência profissional, seu primeiro livro se apresenta como um convite para quem quer (ou precisa) rever seus conceitos nessa área.
Dividido em 4 partes, Telles traz primeiramente os conceitos que embasam seu discurso. Aqui, louvor, adoração, hinos, corinhos e a clássica discussão entre levitas x músicos estão presentes. Em seguida, a prática da música é levantada. O papel do ministro de louvor e a escolha do que se é cantado na igreja são focos da análise. Na terceira parte, o movimento gospel é o alvo das ácidas críticas do escritor, onde indústria e teologia são questionadas de forma bastante consistente. Por fim, Telles traz uma lista de artistas do pós-gospel (incluindo os seus do Candiero), algo que ficará datado, mas mesmo assim será um registro histórico.
Particularmente, o livro traz uma perspectiva interessante, às vezes, um pouco informal demais, mas de toda forma, vejo como uma contribuição muito necessária para esse momento onde o gospel foi sacralizado como produto comercial de qualidade e relevância questionáveis.
Em 2020, ele lança A Décima Marca, fruto de mais uma inquietação a partir da famosa obra 9 Marcas de uma Igreja Saudável, do Mark Dever. Ainda não tive a oportunidade de adquirir e ler, mas pela divulgação, a proposta é aprofundar a discussão da sua primeira publicação, questionando o uso da música na liturgia cristã a partir da trajetória da igreja.
Tendo como subtítulo a frase “uma igreja saudável sabe cantar”, Telles divide o livro em três partes: 1) Doxologia Antiga: explorando a música no Antigo Testamento; 2) Doxologia Primitiva: observando os fragmentos de canções que aparecem no Novo Testamento; e, 3) Doxologia Tradicional: analisando a música dos primeiros séculos até os dias atuais.
A obra certamente traz sua relevância para a edificação da igreja, pois a coloca para pensar, não apenas sobre a forma como se é cantado nos púlpitos, mas a maneira como a igreja enxerga e se relaciona com a produção musical.
Marco Telles: o líder
Como mencionado, a versatilidade de Marco também o faz diretor geral do Coletivo Candiero que já foi tema aqui no Apenas Música (confira aqui). O movimento vem “fazendo barulho” por questionar o consumo e a produção musical no país, por provocar a centralidade do eixo sudeste na música cristã nacional e por dar visibilidade a muitos talentos do norte-nordeste que trabalham com primazia a verdade do Evangelho envolvida na arte regional.
As conferências realizadas pelo coletivo (confira os registros em Recife/20 no nosso IGTV) mostram a adesão de um público desejoso por essa representatividade e disposta a produzir sem o condicionamento do mercado gospel.
Para além disso, Telles também ataca como “influenciador”, bem entre aspas mesmo porque não é necessariamente nos moldes que estamos habituados a ver nas redes sociais. Seus “polêmicos” posts são cirúrgicos em suas críticas às músicas e aos acontecimentos do meio evangélico e nacional, provocando intensas discussões compartilhadas por seus seguidores. Ter uma voz questionadora atuante assim é de grande relevância, pois, de alguma forma, exercita a máxima protestante de ser “uma igreja reformada, sempre em reforma”.
Intenso inquieto e fervoroso, Marco Telles é um nome para ser acompanhado em suas diversas vertentes. Nosso desejo é que suas marcas sejam como sementes que continuem frutificando talentos e expandindo o reino com criatividade, devoção e relevância. Avante!