Em mais um texto no sense eu venho viajar aqui e carregar vocês junto.
Desde já esclareço, não vou falar de Jeremias e do maravilhoso (e molhado) livro de Lamentações. Eu vou falar de C. S. Lewis de nooovooo.
Hoje ouvindo uma certa banda fofa lá do Texas que eu conheci aqui no AM me deparei com uma maravilhosa alegoria de C.S.Lewis (mais uma vez ele!!). E eu precisava dividir essa alegoria com vocês. Trata-se de uma experiência do Eustáquio Clarêncio Mísero, a criança mais chata nas histórias sobre Nárnia!
Eustáquio é, junto com o Edmundo e a Aravis, meu personagem favorito de Nárnia e por uma razão simples: de todos os nomes que cruzamos ao longo dos sete livros, estes três são para mim os que melhor representam ser Filho de Adão e Filha de Eva, são os que melhor revelam a nossa humanidade. Mesmo que a gente custe admitir e se identifique com a Lúcia que é uma criatura linda e corajosa o tempo todo.
Mas vamos aos atos. A primeira vez que um leitor se depara com Eustáquio em A Viagem do Peregrino da Alvorada o detesta, pelo fato simples de que ele é insuportável! Chato, metido a besta, arrogantemente inteligente e sempre disposto a menosprezar o outro. Eustáquio é um porre e um ótimo exemplo da natureza carnal que a Bíblia fala. O menino não consegue supor a existência de um outro mundo e mesmo indo a esse outro mundo se recusa a reconhecer que está errado.
Eustáquio não aparenta nenhum erro capital a priori (não se associa com a feiticeira branca como Edmundo fez) todavia ele carrega de uma maneira latente e insistente esses fardos da natureza humana. Eustáquio é correto, vem de uma família vegetariana, é inteligente, asseado, politicamente correto; e como muitos de nós tem um orgulho excessivo da própria retidão de vida. É uma dessas pessoas que dizem que não roubam, não mentem, não matam, não sonegam, não traem, mas faz questão de mostrar que é melhor que o outro… Cheio de retidão, vazio de compaixão.
Como se isso não bastasse, Eustáquio é terrivelmente materialista, desses que negam a metafísica até a morte. E além de não acreditar em coisas que não podem ser explicadas cientificamente, ele menospreza os que acreditam. Eustáquio zomba da fé alheia mesmo que seja confrontado pelo sobrenatural; zomba para não reconhecer que pode estar errado. O trágico é que ele não está sozinho com essa postura no mundo (Só hoje vi vários Eustáquio nos debates filosóficos dos especialistas do Facebook).
A Viagem do Peregrino da Alvorada é um livro muito legal pois nos aborrece, já que o Lewis fez questão de dividir com o leitor as impressões do Eustáquio sobre a aventura. E haja paciência! O garoto é egoísta, parcial e intransigente. A parte estranha é que me lembra muito a mim mesma em situações onde me sinto ameaçada ou apenas estressada. A grande contribuição desse personagem é lembrar que os Filhos de Adão são Míseros, claramente Míseros, especialmente quando sentem que estão certos ou são superiores.
Eu falei sem parar até aqui só pra chamar vocês a prestar atenção no clímax. Entre as páginas 439 e 453 (no livro único das Crônicas) Lewis exclui deliberadamente Lúcia, Edmundo, Caspian e Ripchip da história e nos convida a viver a Aventura de Eustáquio. Eu gosto disso!
É certo que em alguns dos nossos maiores confrontos precisamos estar sós, para compreendermos a nossa necessidade do outro, ou do Outro. Eu gosto de fazer o paralelo entre o senhor Mísero e o senhor Saulo, ambos inteligentes e corretos aos olhos da lei, mas intransigentes e perseguidores. Ambos precisaram estar sozinhos, com o coração cheio de malícia para enfim terem encontros inesquecíveis. Saulo, virou Paulo, ficou cego e você conhece a história. Eustáquio entrou numa caverna de dragão para se livrar de ajudar os primos a trabalhar, planejou carregar o tesouro do dragão e a medida que planejava matutava abandonar os primos e fugir pra Calomânia rico. Nesse interím dormiu. Acordou um dragão. E como diz o Lewis, o menino “chegou a conclusão de que era um monstro, separado do resto da humanidade”. E o Mísero dragão passou a ter saudade de momentos de interação com os outros humanos a quem ele tanto desprezou. Ser dragão quebrou o orgulho de Eustáquio. Especialmente porque aquela forma só evidenciava quem ele era de fato. E o dragão chorou e chorou muito alto. Sendo dragão ele aprendeu algumas lições sobre conviver com os outros e percebeu o quanto ele mesmo era insuportável. E calado sofria porque chegaria um momento em que seria insustentável conviver com um dragão apesar da boa vontade da tripulação do Peregrino.
Para a sorte dele, o dragão-menino Mísero foi alcançando pela Misericórdia. Aquela que ele não conhecia e de quem zombava sobre a existência. Eustáquio constatou sua miserabilidade e lamentou sobre ela e num maravilhoso golpe do Amor foi chamado à lucidez. A cena é uma das mais lindas de todas as Crônicas de Nárnia.
Eustáquio conta que era noite, e que surgiu diante de si uma figura de leão e apesar de não ter lua, o luar acompanhava o leão, que foi subindo a um monte seguido por Eustáquio. Ao chegar no monte Eustáquio viu águas limpas e entendeu que precisava arrancar de si aquela pele de réptil e assim o fez. Eustáquio conseguiu se livrar da forma de dragão esfregando a pele com as próprias mãos. E ficou feliz. Mas quando encostava na água viu que as escamas e rugas retornavam. E ele repetiu o processo e novamente foi frustrado. E aí:
Aconteceu exatamente a mesma coisa. Eu pensava: “Deus do céu! Quantas peles terei de despir?”. Como estava louco para molhar a pata, esfreguei-me pela terceira vez e tirei uma terceira pele. Mas ao olhar-me na água vi que estava na mesma. Entao o leão disse (mas não sei se falou): “Eu tiro a sua pele”. Deitei de costas e deixei que ele tirasse a minha pele. A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter me atingido o coração. E quando começou a me tirar a pele senti a pior dor da minha vida. (…) Nessa altura agarrou-me – não gostei muito, pois estava todo sensível sem a pele – e atirou-me dentro da água. A princípio ardeu muito, mas em seguida foi uma delicia. Tinha voltado a ser gente. Depois de um certo tempo, o leão me tirou da água e me vestiu com uma roupa nova. Acho que foi um sonho.
Edmundo que é o ouvinte do relato esclarece a Eustáquio que não é sonho e que ele teve um encontro com Aslam, Aslam a quem ele não conhecia, ouvia falar e debochava. É Aslam que nos encontra. E Aslam que chega na hora certa, chegou quando o coração de Eustáquio estava ávido por transformação, porque enfim ele se deu conta de quem era.
Aslam ouviu o lamento do Mísero. E o que Aslam fez a Eustáquio cada um de nós entende, por ter vivido experiência parecida. Havia muitas peles de dragão em Eustáquio de que ele jamais se livraria com seus próprios méritos, força ou estratégia. É mera tentativa. Sacrifício vão. Mas como eu disse várias vezes, essa é a história de um Mísero que lamenta e é encontrado pela Misericórdia. Esta é a alegoria de muitas vidas. É a alegoria sobre a misericórdia que nos salva de nós mesmos. Só acho que Eustáquio merecia uma canção…