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A festa dos foliões e a tristeza protestante

Minha velha Vovó repetia, por vezes, um adágio popular repleto de sabedoria: “Não é por que um burro dá um coice que se cortam as suas patas!” Na verdade é uma espécie de resumo de um fundamento básico de qualquer boa análise crítica para que não se caia na armadilha metonímica: confundir a parte com o todo.

Harvey Cox em seu livro A Festa dos Foliões, muito importante para quem deseja entender o valor da liturgia, faz uma análise do lúdico e de seu valor para a vida em sociedade, bem como para o indivíduo. Na verdade é uma aplicação dos conceitos utilizados por Johan Huizinga no livro Homo Ludens e, em certo sentido, por Pierre Bourdieu em Economia das Trocas Simbólicas.

Cox conjuga os sentidos do “jogo” e do “brinquedo” de Huizinga com a análise de Bourdieu da teoria da religião de Max Weber. Uma mistura do valor da celebração, da festa e do lúdico para a saúde pessoal e social, bem como a crítica de um espírito, equivocado, e que somente valoriza o trabalho e a produção como responsáveis pelo bem da sociedade e do indivíduo.

O protestantismo, marcadamente o puritanismo, produziu uma religião cuja ética básica para o indivíduo encontra-se no trabalho e na produção. Por isso, fez uma severa e prejudicial mutilação litúrgica, desvestindo-a dos símbolos, da mística, da arte sacra, resumindo-a, como muito bem disse o Bispo Dom Robinson Cavalcanti a “quatro paredes caiadas e um sermão”.

Tal somatório gerou uma ética que hiperbolicamente valoriza o trabalho e desvaloriza o lúdico. Nas terras deste Brasil, tal mentalidade, empobrecida pela falta de formação intelectual, quer dos leigos, quer do clero, gerou uma visão empobrecida e falsa e do mundo e do ser humano. Esta visão de mundo e do ser humano fica clara e transparente nas análises “críticas” da maior festa popular do mundo: o Carnaval.

Estas análises acabam pecando no erro que minha vovó desejava que eu, menino, sem sabedoria, não cometesse: a armadilha metonímica. Esquecem que o sério e determinado Dom Quixote, em sua cruzada moral e cavalheiresca, não existe sem o tolo e bufão Sancho Pança. O ser humano é, na verdade, um somatório destes dois símbolos. Ele se pensa como um cavaleiro cheio de nobreza e em busca de altos ideais, mas é uma criança simples e, por vezes, tola, que necessita expressar-se, brincar e se divertir. E, presas na armadilha, as análises condenam o todo por causa dos excessos da parte.

Se desejamos saber se este método está correto (julgar o todo pela parte), basta aplicá-lo a outras análises. Vejamos: cultos neopentecostais exploram as pessoas, logo, todos os cultos são explorações; meu marido me traiu, logo, todos os homens são adúlteros; um padre abusou de uma pessoa menor de idade, logo, todos os religiosos são pedófilos. E se poderia aplicar “ad infinitum” o método e sempre ele se revelaria falso e com conclusões falsas. Justo por que, em lógica, não se aplica ao geral o que é apanágio do particular. Tal análise ou juízo é sofismático.

Entretanto, tal sofisma, confirma um dos fundamentos do mutilado protestantismo brasileiro: a cultura está sob o domínio do diabo. Lutero pôs fim aos conventos, ao celibato do clero, recolocando a vida eclesiástica de volta ao mundo. Mas o estranho protestantismo brasileiro “demonologizou” a cultura, criando uma área de administração para o diabo no mundo. Por isso a armadilha metonímica tem lugar analítico entre evangélicos e encontra respaldo de verdade no coração dos crentes. A falsidade ganha foro de verdade por causa da estrutura capenga do protestantismo brasileiro.

Os excessos do Carnaval não roubam o seu valor lúdico, nem os benefícios do brinquedo para a saúde mental, nem da fantasia para a sublimação. Nossa cultura é alegre, festiva, quase infantil em suas expressões de beleza. Não há mal no Carnaval. Mal é sempre o coração ou a mente: “tudo é puro para os puros” (Tt 1.15). E, tal maldade, não necessita do Carnaval para ser e se expressar. Ela pode estar revestida de símbolos e cânticos sagrados e ser tão ou mais perversa do que um brinquedo, uma dança, uma expressão lúdica e popular. Está no silêncio diante da injustiça ou no bem que não se faz por covardia e interesse.

Não se realiza qualquer inculturação, conforme exige o ethos anglicano, demonologizando a cultura brasileira. Nem se pode condenar o sorriso de muitos por causa da dor de alguns. Seria como tornar a faca um instrumento criado pelo diabo, somente pelo fato de um perverso assassino tê-la utilizado para dar vazão à maldade de seu coração. Penso ser o tempo de resgatar a beleza da festa, o valor do lúdico e integrar o anglicanismo na cultura brasileira.

Um abraço fraterno, Rev. Carlos Alberto Chaves Fernandes

Via Projeto Litougos | Rennovario