Antes de começar, gostaria de dizer que o relato a seguir é de uma pessoa não familiarizada com o rap e sem grandes intimidades com a obra do Kivitz. Me atrevi a escrever sobre este disco porque ele me inquietou (certamente a intenção era essa) com coisas boas e outras nem tanto.
Além disso, indico que você leia este post DEPOIS de ouvir o disco com muita calma (e algumas várias vezes). Ou ler ouvindo faixa por faixa, pois creio que clareia o entendimento e enriquece a discussão.
Recados dados, vamos nessa. 🙂
Por isso é um convite. É Kivitz chamando para o chão da realidade humana, do cotidiano. Com seu “linguajar vagabundo” sem freio para as tais palavras torpes, o rapper diz que o microfone está no nome do “Sem Nome”, numa alusão a Deus (?).
Mais que uma introdução, a faixa mostra quem Kivitz é: um tipo de cristão da nossa época. Daqueles que apanharam da igreja e se incomodam com os rumos que ela está tomando, mas, ao mesmo tempo, que faz parte de um grupo profundamente crítico que, particularmente, desconstrói em excesso ou sem uma rigorosa polidez.
A identificação do cantor com esse público fica clara em trechos como:
“A todo coração que entende o teor do debate (…) ao que chega e se identifica sem fazer alarde. A quem conhece minha história e sabe meu porquê. O fato é: remédio que sara é remédio que arde. Já que a cura do doente é se reconhecer. Para quem percebeu que a vida é sem objetivo. Que a vida em si é o próprio motivo. Meu disco é pra você.”
Sobre eles falarei mais a frente.
Em seguida, temos Fora da Curva, uma faixa musicalmente confusa de entender, ainda mais para quem não é acostumado com o rap. A voz do Kivitz parece ser coadjuvante da batida o que compromete ainda mais o entendimento da letra que, por si só, já exige pela velocidade dos versos. É uma canção para ouvir várias e várias vezes com bastante atenção para captar a mensagem.
Pelo pouco que consegui entender, a faixa retrata o processo de identificação do artista com o rap. Mais que um estilo musical, o rap traduz uma visão de mundo e, através dele, Kivitz interpreta e ressignifica sua realidade. Ouvidos mais sensíveis são bem vindos nessa análise.
Inevitável não vir à lembrança de Criolo com as primeiras palavras de Humildade. Nela, o filho de Ed René Kivitz mostra que ser rapper é profissão, mesmo diante daqueles que não reconhece tal. Para isso, ele faz um seleção de artistas e músicas que marcaram a trajetória do gênero e o influenciaram desde a infância.
É interessante perceber o poder da música na formação de um indivíduo. Não apenas como entretenimento, ela influencia ideologicamente e pulveriza as mais diversas opiniões. E isso contribui com nossa identidade.
Ao mencionar o rap nacional, Kivitz parece justificar o título da faixa fazendo uma crítica subentendida aos rappers ostentação norte-americanos e ao atual funk brasileiro. Das suas raízes, o rap carrega consigo o ser escape às segregações da injustiça, um instrumento de denúncia do sofrimento originalmente negro, contrariando, portanto, seu uso hoje por vários “artistas”. Mas é interessante perceber que quem aqui está reivindicando a humildade é um homem branco de classe média (?). Seria isso irônico para os rappers mais conservadores?
Paciência para quem vai no front é um desabafo quase existencialista. A realidade dúbia é conflitante na mente. Kivitz fala:
“A verdade da vida é insuportável”, “Pergunto qual a evolução? É a mesma bifurcação: mal e bem, mas os meninos é FEBEM.” “O ser humano é mal por bem ou mal? Pelo mal de quem?” “Do desconforto nasce a resistência. Do medo, a ciência.” “Perdi meu templo. Perdi a fé naqueles maus exemplos (…) Hoje o passo é lento. Olhar pro vento. E paciência para quem vai no front.”
Me pergunto se essa faixa é um apenas um desabafo de uma alma cansada como vista em tantos Salmos na qual o autor fala de sua desesperança, mas que, mesmo assim, deixa viva a centelha da sua fé, ou é a transição para um ceticismo, para a descrença do metafísico aqui?
Coisa de Menino começa misteriosa. Esta e a próxima faixa afundam o disco em uma tensão preocupante, pois cresce a sensação de que o músico põe o rap como uma espécie de “salvador da loucura da vida”. Mas não só isso, o sinal amarelo brilha mais forte ao ouvir trechos como “sanidade foi doença na crença do inferno” e “pecado é papo atrasado” cantadas por ele e Biro.
No entanto, por ser rap e sendo o Kivitz é leviano concluir algo tão rapidamente. Seu trabalho não é mero entretenimento, ela exige do ouvinte um aprofundamento. É preciso mergulhar na mente desse cara para entender o b-side de suas palavras. Ou não. Sendo arte, a interpretação é livre como esta.
Seja como for também tento me enxergar nos personagens cantados (sejam eles os próprios cantores ou não), a dramaticidade dos versos e do canto mostram claramente o sofrimento, a dor das feridas da vida e como elas endurecem o coração daqueles que esmorecem a fé. Mas a dose de maldade é para sobrevivência também. Trechos como este comprovam isto:
“E só por hoje é fé que essas rimas sejam mais do que asas. E nossa oração de dor seja nossa mais sincera fratura exposta que se amontoe nas brasas.”
Como se não bastasse, Coisa de Menino finaliza de forma brilhante trazendo a voz do mestre Gilberto Gil cantando A Raça Humana com o trecho “A raça humana é uma semana de trabalho de Deus” e todo o paradoxo da nossa existência.
Fico a me perguntar se os questionamentos de Kivitz já encontraram respostas. Acho que sim, mas penso que não. A próxima faixa levanta essa discussão.
Particularmente, o maior soco do disco fica por conta de Confissões que já começa com:
“Fora meus manos que perderam a fé. Eu compreendo, porque também perdi a minha e não me arrependo. A gente aprende tudo errado desde pequeno. Fé de criança quando azeda vira veneno.”
Como já foi dito e é de conhecimento de muitos, Kivitz é filho do famoso pastor Ed René Kivitz. Como qualquer um que tem grande visibilidade social, há os que o ama e os que o odeia. Seja qual for seu time, confesso que me surpreendi com a sinceridade do rapper aqui. Se a letra for biográfica, imagino a reação do Ed ouvindo a faixa.
Lembro de já ter visto publicações do pastor apoiando seu filho, mas fico pensando no que é para um pai e pastor ouvir essas “confissões”. “Onde foi que eu errei?”, será que essa é uma pergunta feita por ele? Será que ele vê a postura/opinião atual do filho como um erro? Não sei dizer, não me atrevo a chegar nessa intimidade, mas ela é interessante.
Ainda como dito parágrafos atrás, esse disco (mais específico esta faixa) é um retrato de muitos cristãos hoje. Nascidos, crescidos e feridos em berço evangélico, eles têm agora sua fé transformada em veneno. Dos meus mais de 20 anos de caminhada cristã, vivi muitas frustrações e presenciei muitas histórias absurdas de atrocidades feitas por “homens de Deus”. Mas em tempos tão críticos para a fé cristã (sem querer colocar panos quentes no sagrado que se tornou hilário), será realmente necessário destilar veneno? Afinal, creio que não precisamos fazer coro contra a atual igreja evangélica porque já tem gente suficiente aí fora para isso. Acredito que devemos sim reconhecer nossos muitos erros, pedir perdão pela inacreditável estupidez de tantos crentes e criticar de forma restauradora, pois existe apenas uma igreja e um só povo.
Mas a faixa não se encerra nisso. Kivitz continua: “Não sonho com que esse mundo confesse. Veja. Ame a luta. Ame a prece. Somente que o mundo seja.” Como se interpreta esse trecho? Refere-se a famosa “confesse a Jesus para ser salvo”? Que você me diz? Como dito, a luz é amarela, não para bloqueio, mas para digestão afim de ajuntar. Gente para espalhar já temos (e muito).
Respira que ainda há mais:
“Eu recebi as cartas de vocês. Além dessas letras tremidas pude ler, gritos de socorro pude ouvir. Em cada olhar, pude ver o desespero de não saber no que crer. Eu me identifiquei, pois só tenho pensado nisso, né (…) Focado nisso, né, ao responder.”
É interessante ver que o mesmo sujeito que destila o veneno é o mesmo que chora. O grito de socorro de uma geração que está no limbo entre uma igreja (humana) anacrônica e corrompida e uma sociedade “niilista”. Quem ajudará esses? Quem acolherá e mostrará o caminho para passar no meio da confusão andando sempre orientados? “Perdão se minha resposta é meu pedido de arrego”, finaliza Kivitz.
Segue o disco.
Depois da excepcional Eu na Sua Pele, agora é a vez do Paulo Nazareth participar de um álbum do Kivitz. Radicalizando o disco, Vaso de Barro traz um violão meio folk que chega até lembrar a banda Resgate.
A lírica da faixa fala sobre os fracassos da vida e como eles são importantes na nossa construção. Optar por um estilo de vida mais simples, valorizando gentes e momentos ao invés de coisas é o foco da mensagem. É um convite a repensar nossas escolhas.
A Voz é sensacional. A melhor faixa do disco traz uma mensagem positiva de fé e superação diante de todos os desafios da vida. O feat com Rashid, Dona Kelly e Stefanie enriquece demais a faixa. Cada um traz sua experiência e deixa o recado com uma sabedoria bem madura. O próprio Kivitz se mostra mais esperançoso aqui e entrega versos de estímulo ao ouvinte. A Voz é um refrigério.
Finalmente terminando o disco temos Juro Que Eu Tento. Uma faixa curta e com uma sonoridade estranha que também fala sobre as experiências da vida.
Bem, é isso. “Em Nome do Vento” é um lançamento que traz estampado o selo Kivitz de criticidade e estimula o ouvinte à rebeldia ou à reflexão. A escolha fica por conta de quem ouve. Seja como for, ele eleva o patamar da discussão entregando um trabalho denso, bem construído e inteligente. Parabéns, Kivitz. Deus seja contigo.
E você, quais as suas impressões? Lembrando que o que foi escrito aqui são apenas interpretações livres, primeiras impressões de um ouvinte não convencional de rap. 🙂